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segunda-feira, 15 de maio de 2017

O cabelo de Clara



Segundo o site da Agência Brasil, a busca pelo termo feminismo aumentou 86,7% no Brasil, entre janeiro de 2014 e outubro de 2015 o que revela não só o aumento do interesse por informações sobre o assunto, mas também demonstra maior atuação desse movimento social ou a sua maior visibilidade, com a qual contribuiu a polêmica prova do ENEM de 2015 que continha questões sobre a violência contra a mulher e sobre o aparato ideológico feminista da pensadora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986).
Nesse contexto, não se pode deixar de mencionar que, em 2011, o Brasil elegeu sua primeira presidenta, Dilma Rousseff, reeleita em 2015 que, contudo, sofreu diversas críticas que ultrapassam o campo da política e invadem o âmbito do machismo e da misoginia.
Assim, num contexto conturbado, a pauta feminista ganhou força a partir de 2014, não somente no Brasil, angariando vozes divergentes, mas também vozes de peso (no que entenda-se personalidades como vozes de autoridade) em favor da sua militância.
Diante disso, é impossível não interpretar a produção cultural desse período a partir das luzes (e sombras) geradas pelo conflituoso contexto político, social, econômico e cultural no qual se insere. Dessa forma, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, produção de 2016, não passou incólume a interpretações, críticas e ovações, a começar pelo próprio posicionamento dos atores do filme que, no Festival de Cannes, se posicionaram contra o golpe travestido de impeachment da presidenta Dilma. Assim, o filme tornou-se político.
Na verdade, todas as nossas ações são políticas sendo que posicionar-se sobre um assunto através de um personagem é sintomático dessa situação. Dessa forma, o filme nos apresenta diversas críticas, umas mais sutis e outras mais contundentes, sobre o estilo de vida em Pernambuco (e porque não no Brasil) do século XXI, que pensávamos que estaríamos mais para Jetsons do que para Flinstones
As críticas são veiculadas pela personagem principal interpretada por Sônia Braga. A história de Clara, a personagem, inicia-se com ela ainda jovem (interpretada por Barbara Colen), com os cabelos curtos consequência de um câncer que, posteriormente, descobrimos ter sido de mama. A cena em que esta revelação ocorre é chocante. Clara madura, com cabelos compridos, sai com as amigas e conhece um homem com o qual se relaciona naquele momento. No carro, entre beijos e carícias, ele nota algo diferente em Clara. Sem subterfúgios, ela conta que passou por uma mastectomia. O homem fica constrangido, se desvencilha dela e Clara vai sozinha para casa.
Essa cena revela muito mais do que que um descuidado espectador pode sugerir. A começar com a escolha de Clara em não fazer uma reconstrução de mama. Os seios são, talvez de forma estereotipada, um símbolo da feminilidade. Clara recusa esse símbolo. Ou melhor, ela mantém o símbolo. A mastectomia é o símbolo da sobrevivência e da resistência. Porém, Clara não deixou de ser feminina. Ou melhor, não deixou de ser mulher e não deixou de se sentir mulher, como é demonstrada na cena em que ela mantém relações sexuais com um michê.
Outro aspecto importante é o cabelo de Clara. Ele também pode ser compreendido como um personagem. O cabelo da Clara madura sempre é colocado em primeiro plano, sobretudo antes de momentos marcantes da personagem. Ou ela o prende, ou solta. Mas eles estão ali. Mais um símbolo de feminilidade. E de sobrevivência e de resistência.
A narração da vida de Clara nos permite delinear diversas situações às quais as mulheres estão submetidas. A começar com o estereótipo de feminilidade que é questionado pela escolha de Clara manter sua mastectomia. Outro questionamento promovido por esta personagem é sobre a vida sexual da mulher madura (em oposição à terceira idade). Clara está viva e sente viva sua sexualidade. Assim, como sente-se viva sem uma parte do seu corpo que aos outros, sobretudo aos homens, parece decretar sua morte.
Há algumas hipóteses que interpretam Clara como uma alusão a Dilma, que também sobreviveu a um câncer e tenta sobreviver nesse man's man's world. Clara pode ser Dilma. Mas não só. Ela surge no contexto da lute de mulheres que, ainda no século XXI buscam pelo direito de serem respeitas incondicionalmente.